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O LIVRO DE URANTIA


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DOCUMENTO 153

A CRISE EM CAFARNAUM

No dia da sua chegada a Betsaida, sexta-feira à noite, e no sábado pela manhã os apóstolos notaram que Jesus estava seriamente ocupado com algum problema grave; eles perceberam que o Mestre estava dedicando de um modo pouco habitual o seu pensamento a alguma questão importante. Ele não tomou o desjejum e comeu pouquíssimo ao meio-dia. Todo o sábado, pela manhã, e na noite anterior, os doze e os condiscípulos estiveram reunidos em pequenos grupos pela casa, no jardim e na praia. Uma tensão de incerteza e uma dúvida cheia de apreensão pairavam sobre todos eles. E quase nada tinha Jesus dito-lhes desde que deixaram Jerusalém.

Havia meses que não viam o Mestre tão preocupado e tão pouco comunicativo. Até Simão Pedro estava deprimido, e abatido mesmo. André não sabia o que fazer pelos seus companheiros desanimados. Natanael disse que estavam em meio à “calmaria antes da tormenta”. Tomé expressou a opinião de que “algo fora do extraordinário estava para acontecer”. Filipe aconselhou a Davi Zebedeu que “esquecesse os planos de alimentar e alojar a multidão, até que saibamos sobre o que o Mestre anda pensando”. Mateus estava fazendo esforços renovados para repor as economias do fundo de caixa. Tiago e João falavam sobre o sermão vindouro, na sinagoga, e especulavam muito quanto à sua natureza provável e o seu alcance. Simão zelote expressou a crença, uma esperança na verdade, de que “o Pai no céu pudesse estar para intervir de alguma maneira inesperada, para defender e dar apoio ao seu Filho”, enquanto Judas Iscariotes ousava entregar-se ao pensamento de que possivelmente Jesus estivesse oprimido de pesar por “não ter tido coragem e arrojo de permitir aos cinco mil que o proclamassem rei dos judeus”.

Do meio desse grupo de seguidores deprimidos e desconsolados, foi que Jesus saiu, na bela tarde de sábado, para pregar o seu sermão memorável na sinagoga de Cafarnaum. A única palavra de encorajamento ou de votos de êxito de todos os seus seguidores diretos veio de um dos insuspeitos gêmeos Alfeus, o qual, no momento em que Jesus deixou a casa a caminho da sinagoga, o saudou jovialmente dizendo: “Oramos para que o Pai te ajude, e para que possamos ter multidões maiores do que nunca”.

1. A PREPARAÇÃO DO CENÁRIO

Uma audiência distinta cumprimentou Jesus às três horas dessa tarde linda de sábado, na nova sinagoga de Cafarnaum. Jairo presidia e passou a Jesus as escrituras para que as lesse. No dia anterior, cinqüenta e três fariseus e saduceus tinham chegado de Jerusalém; mais de trinta dos líderes e chefes das sinagogas vizinhas estavam também presentes. Esses líderes religiosos judeus atuavam diretamente sob as ordens do sinédrio de Jerusalém, e constituíam a frente ortodoxa que havia vindo para inaugurar


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uma guerra aberta a Jesus e aos seus discípulos. Assentados ao lado desses líderes judeus, nos assentos de honra da sinagoga, estavam os observadores oficiais de Herodes Antipas, que tinham sido enviados para certificar-se da verdade a respeito dos relatórios perturbadores de que uma tentativa havia sido feita, pelo populacho, de proclamar Jesus como o rei dos judeus nos domínios de Filipe, irmão de Herodes.

Jesus compreendeu que estava enfrentando uma declaração direta de guerra irrestrita e aberta da parte dos seus inimigos crescentes e, ousadamente, ele escolheu assumir a ofensiva. Durante a alimentação das cinco mil pessoas, ele havia desafiado as idéias a respeito de um messias material; agora ele escolhia de novo contestar abertamente o conceito que tinham de um libertador judeu. Essa crise, que começou com a alimentação dos cinco mil, e que terminou com esse sermão na tarde de sábado, era o refluxo da maré do renome e da aclamação popular. Daqui por diante, o trabalho do Reino deveria ficar cada vez mais voltado à tarefa de importância progressiva de conquistar convertidos firmes para a verdadeira fraternidade religiosa da humanidade. Esse sermão marca uma crise de transição, do período de discussão, controvérsia e decisão, até aquele período de guerra aberta, para a aceitação final ou a rejeição definitiva.

O Mestre bem sabia que muitos dos seus seguidores estavam preparando as próprias mentes, vagarosa mas firmemente, para rejeitá-lo finalmente. E, do mesmo modo, ele sabia que muitos dos seus discípulos estavam, lenta mas seguramente, passando por aquele aperfeiçoamento da mente e por aquela disciplina de alma que os capacitaria a triunfar sobre a dúvida e afirmar, corajosamente, a sua fé amadurecida no evangelho do Reino. Jesus entendia plenamente como os homens preparam-se para as decisões, numa crise, e como era o efeito dos atos súbitos da escolha corajosa, pelo processo lento da escolha reiterada entre as situações recorrentes do bem e do mal. Ele submeteu os seus mensageiros escolhidos a repetidas provas de desapontamentos, e proporcionou-lhes oportunidades freqüentes e testadoras, para que escolhessem entre o modo certo e o errado de fazer frente às dificuldades espirituais. Ele soube que podia contar com os seus seguidores, quando estivessem no teste final, para tomar as suas decisões vitais de acordo com as atitudes mentais habituais e as reações espirituais, já observadas anteriormente.

Essa crise na vida terrena de Jesus começou com a alimentação dos cinco mil e terminou com esse sermão na sinagoga; a crise nas vidas dos apóstolos começou com o sermão na sinagoga e continuou por todo um ano, terminando apenas com o julgamento e a crucificação do Mestre.

Naquela tarde, quando eles se assentaram na sinagoga, antes de Jesus começar a falar, havia apenas um grande mistério, só uma pergunta suprema, nas mentes de todos. Tanto os seus amigos, quanto os inimigos ponderavam em torno de só um pensamento, e que era: “Porque ele próprio, de um modo tão deliberado e efetivo, deu as costas à maré de entusiasmo popular?” E foi, imediatamente antes e imediatamente depois desse sermão, que as dúvidas e o desapontamento dos seus adeptos descontentes cresceu até a oposição inconsciente e finalmente se transformou em ódio de fato. Foi depois desse sermão na sinagoga que Judas Iscariotes alimentou o seu primeiro pensamento consciente de desertar. Mas, efetivamente, ele controlou, naqueles momentos, todas essas inclinações.

Todos estavam em estado de perplexidade. Jesus os tinha deixado emudecidos e confundidos. Recentemente, ele tinha executado a maior demonstração de poder sobrenatural, que caracterizaria toda a sua carreira. A alimentação dos cinco mil era o acontecimento de maior apelo da sua carreira,


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segundo o conceito do Messias judeu esperado. Mas essa extraordinária vantagem foi imediata e inexplicadamente posta de lado pela sua recusa, pronta e inequívoca, de ser feito rei.

Na sexta-feira à noite, e novamente no sábado pela manhã, os líderes de Jerusalém tinham trabalhado longa e empenhadamente, junto a Jairo, para impedir que Jesus falasse na sinagoga, mas de nada valeu. A única resposta de Jairo a todo esse pleito foi: “Eu já atendi esse pedido, e não violarei a minha palavra”.

2. O SERMÃO QUE MARCOU UMA ÉPOCA

Jesus abriu este sermão lendo da lei como está no Deuteronômio Jesus abriu este sermão lendo da lei como está no Deuteronômio O Senhor vos fará esmagados pelos vossos inimigos; sereis removidos de todos os reinos da Terra. E o Senhor vos levará e levará o rei a quem entronizastes às mãos de uma nação estranha. Vós ficareis atônitos, sereis como um provérbio, uma máxima entre todas as nações. Os vossos filhos e as vossas filhas irão para o cativeiro. Os estrangeiros subirão alto em autoridade no vosso meio, enquanto vós estareis muito abaixo. E essas coisas cairão sobre vós e sobre a vossa semente, para sempre, porque não tereis ouvido a palavra do Senhor. E, portanto, vós servireis aos vossos inimigos, que virão contra vós. Passareis fome e sede e vestireis o jugo estrangeiro de ferro. O Senhor, de longe, trará uma nação contra vós, dos confins da Terra, uma nação cuja língua não entendereis, uma nação de rosto duro, uma nação que terá pouca consideração por vós. E eles vos cercarão, em todas as vossas cidades, até que caiam os muros altos fortificados, em que confiastes, e toda a terra cairá nas mãos deles. E acontecerá que vós sereis levados a comer os frutos dos vossos próprios corpos, a carne dos vossos filhos e filhas, durante esse tempo de cerco, por causa da penúria com a qual os vossos inimigos vos oprimirão”.

E, quando Jesus acabou essa leitura, ele voltou-se para os profetas e leu, de Jeremias: “‘Se vós não ouvirdes as palavras dos meus servidores, os profetas que eu vos enviei, então farei desta casa como em Shiló, e farei desta cidade uma maldição para todas as nações da Terra’. E os sacerdotes e os instrutores ouviram Jeremias dizer essas palavras na casa do Senhor. E aconteceu que, quando Jeremias tinha acabado de falar tudo o que o Senhor tinha-lhe mandado dizer a todo o povo, os sacerdotes e os instrutores seguraram-no, dizendo: ‘Tu irás morrer certamente’. E todo o povo fez uma multidão em torno de Jeremias, na casa do Senhor. E, quando os príncipes de Judá ouviram essas coisas, eles julgaram Jeremias. E então falaram os sacerdotes e os instrutores aos príncipes e a todo o povo, dizendo: ‘Esse homem é digno de morrer, pois ele profetizou contra a nossa cidade, e vós o ouvistes com os vossos próprios ouvidos’. Então, Jeremias falou a todos os príncipes e a todo o povo: ‘O Senhor enviou-me para profetizar contra esta casa e contra esta cidade, com todas as palavras que ouvistes. Agora, portanto, corrigi os vossos hábitos e reformai as vossas ações e obedecei a voz do Senhor, vosso Deus, para que possais escapar do mal que foi pronunciado contra vós. Quanto a mim, vede que estou nas vossas mãos. Fazei comigo como parecer bem e direito aos vossos olhos. Mas sabeis, por certo, que, se me enviardes para a morte, vós derramareis sangue inocente sobre vós próprios e sobre esse povo, pois o Senhor me mandou para a verdade e para dizer todas essas palavras aos vossos ouvidos’.


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“Os sacerdotes e instrutores daqueles tempos tentaram matar Jeremias, mas os juízes não consentiriam, se bem que, pelas suas palavras de aviso, eles o fizeram descer por meio de cordas até uma masmorra imunda para que ele afundasse na lama até às axilas. Foi isso o que esse povo fez ao profeta Jeremias, por ele ter obedecido à ordem do Senhor de prevenir os seus irmãos sobre a iminente queda política deles. Hoje eu desejo perguntar-vos: O que irão os sacerdotes, os chefes e os líderes religiosos desse povo fazer com o homem que ousa avisar-vos sobre o dia da vossa condenação espiritual? Vós também buscareis levar à morte o instrutor que ousa proclamar a palavra do Senhor e que não teme mostrar como estais recusando caminhar no caminho da luz que leva à entrada do Reino do céu?

“O que buscais como evidência da minha missão na Terra? Nós vos deixamos tranqüilamente nas vossas posições de influência e de poder, enquanto pregamos as boas-novas aos pobres e aos desterrados. Não fizemos nenhum ataque hostil àquilo a que mantendes reverência, mas antes proclamamos uma nova liberdade para a alma do homem oprimida pelo medo. Eu vim ao mundo para revelar o meu Pai e para estabelecer na Terra a fraternidade espiritual dos filhos de Deus, o Reino do céu. E, não obstante ter eu, por tantas vezes, vos relembrado de que o meu Reino não é deste mundo, e ainda o meu Pai concedeu-vos muitas manifestações de milagres materiais, além de transformações e regenerações espirituais mais evidentes.

“Que novo sinal buscai de minhas mãos? Eu declaro que vós já tendes evidências suficientes para capacitar-vos a tomar a vossa decisão. Em verdade, em verdade, eu digo a tantos que se assentam diante de mim neste dia, que estais frente à necessidade de escolher que caminho tomareis; e eu vos digo, como Joshua disse aos vossos ancestrais: ‘Escolhei, neste dia, a quem servireis’. Hoje, muitos de vós estais na encruzilhada dos caminhos.

“Quando não pudestes encontrar-me, depois do banquete da multidão, no outro lado do lago, alguns de vós alugastes os barcos de pesca em Tiberíades, que uma semana antes estavam abrigados por perto, durante uma tempestade, para saírem à minha procura, e para quê? Não para buscar a verdade e a retidão, nem para que pudésseis melhor saber como servir e ministrar aos vossos semelhantes! Não, mas, antes, para que tivésseis mais do pão pelo qual não trabalhastes. Não foi para preencher as vossas almas com a palavra da vida, mas apenas para que pudésseis encher o ventre com o pão da facilidade. E há muito vos foi ensinado que o Messias, quando viesse, faria aqueles prodígios que tornariam a vida agradável e fácil para todo o povo escolhido. Não é, pois, de se estranhar que vós, que fostes educados assim, almejásseis os pães e os peixes. Mas eu vos declaro que essa não é a missão do Filho do Homem. Eu vim para proclamar a liberdade espiritual, para ensinar a verdade eterna e para dar alento à fé viva.

“Meus irmãos, não ansieis pelo alimento que perece, mas, antes buscai o alimento espiritual que nutre até à vida eterna; e esse é o pão da vida, que o Filho dá a todos que o tomarem e o comerem, pois o Pai deu, sem medidas, essa vida ao Filho. E quando vós me perguntastes: ‘O que devemos fazer, para executar a obra de Deus?’ Eu simplesmente vos disse: ‘Esta é a obra de Deus; que acrediteis naquele que Ele enviou’”.

E então disse Jesus, apontando o desenho de um vaso de maná que decorava o lintel dessa nova sinagoga, e que era decorado com cachos de uva: “Vós pensastes que os vossos antepassados no deserto comeram maná – o pão do céu – mas eu vos digo que esse pão era da Terra. Embora Moisés não tenha dado aos vossos pais o pão do céu, o meu Pai agora


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está pronto para dar-vos o verdadeiro pão da vida. O pão do céu é aquele que vem de Deus e que dá a vida eterna aos homens do mundo. E quando me disserdes: Dê-nos este pão vivo; eu responderei: eu sou este pão da vida. Aquele que vem a mim não terá fome, e aquele que acredita nunca terá sede. Vós me vistes, vivestes comigo, e contemplastes minhas obras, e ainda não acreditais que tenha eu vindo do Pai. Mas aqueles que acreditam – que não temam. Todos aqueles que são conduzidos pelo Pai virão a mim e aquele que vem a mim de nenhum modo será rejeitado.

“E deixai-me agora declarar, de uma vez por todas, que eu desci à Terra, não para fazer a minha própria vontade, mas a vontade Dele que me enviou. E a vontade final Daquele que me enviou é a de que eu não perca um só dentre aqueles que a mim foram dados. E esta é a vontade do Pai: Que todo aquele que vê o Filho e que acredita nele terá a vida eterna. Ainda ontem eu vos alimentei com o pão para os vossos corpos; hoje eu vos ofereço o pão da vida para as vossas almas famintas. E, agora, recebereis o pão do espírito com a mesma vontade com que comestes o pão deste mundo?”

E quando Jesus parou por um momento para olhar a assistência, um dos instrutores de Jerusalém (um membro do sinédrio) levantou e perguntou: “Devo entender que dizes que tu és o pão que vem do céu, e que o maná que Moisés deu aos nossos pais no deserto não era?” E Jesus respondeu ao fariseu, “Compreendeste certo”. Então disse o fariseu: “Mas não és Jesus de Nazaré, o filho de José, o carpinteiro? O teu pai e a tua mãe, tanto quanto os teus irmãos e irmãs, não são bem conhecidos de muitos de nós? Como é que tu apareces aqui na casa de Deus e declaras que vieste do céu?”

Nesse momento havia muito murmúrio na sinagoga, e ocorria uma tal ameaça de tumulto que Jesus levantou-se e disse: “Sejamos pacientes, a verdade nunca sofre com um exame honesto. Eu sou tudo o que dizes, e sou mais. O Pai e eu somos um; o Filho apenas faz aquilo que lhe ensina o Pai, e todos aqueles que forem dados ao Filho pelo Pai, o Filho os receberá consigo. Já lestes onde está escrito, nos profetas: ‘Todos vós sereis ensinados por Deus’. E que: ‘Aqueles que a quem o Pai ensina ouvirão também o seu Filho’. Todo aquele que consente nos ensinamentos do espírito residente do Pai, finalmente virá para mim. Não que algum homem tenha visto o Pai, mas que o espírito do Pai vive dentro do homem. E o Filho que desceu do céu, certamente viu o Pai. E aqueles que de fato acreditam nesse Filho, já têm a vida eterna.

“Eu sou este pão da vida. Os vossos pais comeram o maná no deserto e estão mortos. Mas esse pão que desce de Deus, se um homem come dele, ele nunca morrerá em espírito. Eu repito, eu sou esse pão vivo, e toda alma que alcança a compreensão dessa natureza unificada, de Deus e de homem, viverá para sempre. E esse pão da vida que eu dou a todos que o receberem é a minha própria vida e natureza combinadas. O Pai, no Filho, e o Filho uno com o Pai – essa é a revelação que a minha vida dá ao mundo e a minha dádiva de salvação a todas as nações”.

Quando Jesus terminou de falar, o dirigente da sinagoga deu a reunião por terminada, mas ninguém queria ir embora. Alguns se amontoaram em torno de Jesus para fazer mais perguntas, enquanto outros murmuravam e discutiam entre si. E esse estado de coisas continuou por mais de três horas. Era já mais de sete horas quando a audiência finalmente dispersou-se.


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3. APÓS A REUNIÃO

Muitas foram as perguntas feitas a Jesus, após a reunião. Algumas vinham dos seus discípulos perplexos, mas a maior parte delas foi perguntada por descrentes capciosos, que apenas queriam embaraçá-lo e tecer-lhe armadilhas.

Um dos fariseus visitantes, subindo em um pedestal, fez esta pergunta aos berros: “Tu nos dizes que és o pão da vida. Como podes dar-nos a tua carne para comermos ou o teu sangue para bebermos? De que serve o teu ensinamento se ele não pode ser colocado em prática?” E Jesus respondeu a essa pergunta, dizendo: “Eu não vos ensinei que a minha carne é o pão da vida, nem que o meu sangue é a água da vida. Mas eu disse que a minha vida na carne é uma outorga do pão do céu. O fato da Palavra de Deus outorgada à carne e o fenômeno do Filho do Homem submetido à vontade de Deus constituem uma realidade da experiência que é equivalente ao sustento divino. Vós não podeis comer a minha carne nem podeis beber do meu sangue, mas vós podeis tornar-vos um em espírito comigo, do mesmo modo que eu sou uno em espírito com o Pai. Vós podeis ser nutridos pela palavra eterna de Deus, que é de fato o pão da vida, e que foi outorgado à semelhança da carne mortal; e vós podeis ter a vossa alma regada pelo espírito divino, que é verdadeiramente a água da vida. O Pai enviou-me ao mundo para mostrar como ele deseja residir nos homens e conduzi-los; e, assim, eu tenho vivido esta vida na carne para inspirar a todos os homens a buscar conhecer também a vontade do Pai celeste residente e fazer a Sua vontade”.

Então, um dos espiões de Jerusalém que tinha estado observando Jesus e os seus apóstolos, disse: “Notamos que nem tu nem os teus apóstolos lavais as vossas mãos apropriadamente, antes de comerdes o pão. Deveis saber muito bem que essa prática de comer com as mãos sujas, e sem lavá-las é uma transgressão da lei dos mais velhos. E as vossas xícaras e os vasilhames, vós também não os lavais apropriadamente. Porque mostrais tal desrespeito pelas tradições dos pais e pelas leis dos nossos anciães? Quando Jesus o ouviu dizendo isso, respondeu: “Por que é que vós transgredis os mandamentos de Deus, segundo as leis da vossa tradição? Os mandamentos dizem: ‘Honrai o vosso pai e a vossa mãe’. E mandam que compartilheis com eles os vossos recursos, se necessário; mas vós aprovastes uma lei de tradição que permite que os filhos incumpridores digam que o dinheiro com o qual os pais poderiam ser assistidos foi ‘dado a Deus’. A lei dos anciães desobriga assim esses filhos astuciosos da sua responsabilidade, não obstante os filhos usarem, posteriormente, todo esse dinheiro para o seu próprio conforto. Por que, esvaziais assim o mandamento da vossa própria tradição? Bem fez a profecia de Isaías sobre todos vós, hipócritas, dizendo: ‘Esse povo me honra com os seus lábios, mas o seu coração está longe de mim. Em vão eles me adoram, ensinando os preceitos humanos como se fossem doutrinas’.

“Podeis ver como vós estais desertando os mandamentos quando vos apegais às tradições dos homens. Estais totalmente dispostos a rejeitar a palavra de Deus ao manterdes as vossas tradições. E, de muitos outros modos, ousais estabelecer os vossos próprios ensinamentos acima da lei e dos profetas”.

Jesus então dirigiu as suas observações a todos os presentes. Ele disse: “Mas ouvi a mim, todos vós. Não é aquilo que entra na boca o que suja espiritualmente o homem, mas mais aquilo que procede da boca e do coração”. Mas, mesmo os apóstolos não compreenderam o significado das suas palavras, pois Simão Pedro também lhe perguntou: “Para que alguns dos teus ouvintes não sejam desnecessariamente ofendidos, gostaríeis de explicar-nos o significado dessas palavras?” E então disse Jesus a Pedro:


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“Também para ti é difícil compreender? Não sabes que toda planta que o meu Pai celeste não tiver plantado será arrancada? Volta a tua atenção para aqueles que querem conhecer a verdade. Tu não podes obrigar os homens a amarem a verdade. Muitos desses instrutores são guias cegos. E tu sabes que, se um cego guia outro cego, ambos caem no fosso. Mas ouve enquanto eu te digo a verdade a respeito dessas coisas que sujam moralmente e que contaminam espiritualmente os homens. Eu declaro que não é o que entra no corpo pela boca, ou o que tem acesso à mente por meio dos olhos e ouvidos, que suja o homem. O homem só se suja por aquele mal que se origina dentro do coração, e que tem expressão nas palavras e feitos de tais pessoas ímpias. Não sabes que é do coração que saem os maus pensamentos, os projetos perversos de assassinato, de roubo, e os adultérios, junto com o ciúme, o orgulho, a ira, a vingança, as injúrias e o testemunho falso? E são essas as coisas que sujam os homens, e não que eles comam o pão com mãos que não foram lavadas segundo o cerimonial”.

Os comissários fariseus do sinédrio de Jerusalém estavam agora quase convencidos de que Jesus deveria ser apreendido sob a acusação de blasfêmia ou de insultar a lei sagrada dos judeus; e daí os esforços deles para envolvê-lo na discussão, e levá-lo a um possível ataque às tradições dos anciães e às chamadas leis orais da nação. Não importa quão escassa a água pudesse estar, esses judeus tradicionalmente escravizados nunca deixariam de ir adiante com a lavação das mãos que era requerida pela cerimônia, antes de todas as refeições. Era a sua crença de que “é melhor morrer do que transgredir os mandamentos dos anciães”. Os espiões fizeram essa pergunta porque tinha sido descrito que Jesus tinha dito que: “A salvação é uma questão mais de corações limpos do que de mãos limpas”. Mas essas crenças, quando se tornam uma parte da religião, é difícil de se escapar delas. Mesmo muitos anos depois desse dia o apóstolo Pedro ainda estava preso nas amarras do medo, de muitas dessas tradições, sobre as coisas limpas e sobre as impuras, sendo finalmente libertado apenas quando experienciou um sonho extraordinário e vívido. Tudo isso pode ser mais bem compreendido quando é lembrado que esses judeus viam com a mesma gravidade o comer com as mãos não lavadas e o intercâmbio com uma prostituta, e que ambos os atos eram igualmente puníveis com a excomunhão.

Assim o Mestre escolheu discutir e expor a tolice de todo o sistema rabínico de regras e regulamentações, que era representado pela lei oral – as tradições dos anciães, toda ela considerada como sendo mais sagrada e mais obrigatória para os judeus até mesmo do que os ensinamentos das escrituras. E Jesus falou com menos reserva porque ele sabia que a hora tinha chegado em que nada mais ele podia fazer para impedir uma ruptura aberta de relações com esses líderes religiosos.

4. ÚLTIMAS PALAVRAS NA SINAGOGA

Em meio às discussões após essa reunião, um dos fariseus de Jerusalém trouxe a Jesus um jovem demente que estava possuído por um espírito indisciplinado e rebelde. Conduzindo esse menino demente até Jesus, ele disse: “O que podes fazer em uma aflição como esta? Tu podes expulsar os demônios?” E, quando olhou para o jovem, o Mestre ficou comovido de compaixão e, fazendo um sinal para que o jovem viesse até ele, tomou-o pela mão e disse: “Tu sabes quem eu sou; sai dele; e eu encarrego um dos teus companheiros leais de providenciar para que tu não voltes”. E imediatamente o jovem ficou normal e com a sua mente curada. E esse é o primeiro caso em que Jesus realmente expulsa um “espírito mau” de um


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ser humano. Todos os casos anteriores eram apenas de supostas possessões do demônio; mas esse era um caso genuíno de possessão demoníaca, como os que algumas vezes ocorreram naqueles dias e antes do Dia de Pentecostes, quando o espírito do Mestre foi efusionado sobre toda a carne, tornando para sempre impossível que esses poucos rebeldes celestes tirassem essa vantagem de certos tipos instáveis de seres humanos.

Quando viu o povo maravilhado, um dos fariseus levantou-se e acusou Jesus de poder fazer essas coisas porque estava em aliança com os demônios; pois ele admitia que, na sua linguagem para expulsar esse demônio, eram conhecidos um do outro; e esse fariseu continuou, afirmando que os líderes e instrutores religiosos em Jerusalém tinham decidido que Jesus fazia todos esses chamados milagres pelo poder de Belzebu, o príncipe dos demônios. Disse ainda: “Não tenhais nada a ver com esse homem; ele está de parceria com Satã”.

E então Jesus disse: “Como pode Satã expulsar Satã? Um reino dividido contra si próprio não sobrevive; se uma casa for dividida contra ela própria, ela será logo levada à ruína. Pode uma cidade suportar o cerco se não estiver unida? Se Satã expulsa Satã, ele está dividido contra si próprio; como então o seu reinado se mantém? E devias saber que ninguém pode entrar na casa de um homem forte e despojá-lo dos seus bens a menos que antes ele tenha dominado e acorrentado aquele forte homem. E assim, se eu, pelo poder de Belzebu, expulso demônios, por quem os vossos filhos os expulsam? E é por isso que eles serão os vossos juízes. Mas se eu, pelo espírito de Deus, expulso os demônios, então o Reino de Deus realmente veio até vós. Se não estivésseis cegos pelo preconceito e corrompidos pelo medo e o orgulho, teríeis facilmente percebido que um que é maior do que os demônios está no vosso meio. Vós me obrigais a declarar que aquele que não está comigo está contra mim, e que aquele que não se congrega a mim dispersa-se. Deixe-me fazer um aviso solene a vós, que, com os vossos olhos abertos, e com malícia premeditada, tendes a presunção de ousar atribuir a obra de Deus aos demônios! Em verdade, em verdade, eu vos digo, todos os vossos pecados serão perdoados, e mesmo as vossas blasfêmias, mas aquele que blasfemar contra Deus com deliberação e com má intenção nunca terá o perdão. Já que esses trabalhadores das iniqüidades não buscarão nem receberão jamais o perdão, eles são culpados do pecado de rejeitar eternamente o perdão divino.

“Muitos de vós, nesse dia, chegastes à encruzilhada dos caminhos; vós começastes a fazer a escolha inevitável entre a vontade do Pai e o caminho das trevas escolhido por vós próprios. E o que escolherdes agora, assim finalmente vós sereis. Vós deveis fazer com que a árvore seja boa e que os frutos da árvore sejam bons, ou então a árvore se corromperá, assim como os seus frutos. Eu declaro que, no Reino eterno do meu Pai, a árvore é conhecida pelos seus frutos. Mas alguns de vós sois como víboras; como podeis, tendo já escolhido o mal, gerar bons frutos? Afinal, as vossas bocas falam pela abundância do mal nos vossos corações”.

Então se levantou um outro fariseu, que disse: “Instrutor, gostaríamos que nos desses um sinal predeterminado, que nós concordaríamos, fosse o estabelecedor da tua autoridade e do teu direito de instruir. Tu concordarás com esse arranjo?” E quando Jesus ouviu isso, ele disse: “Essa geração sem fé, e à procura de um sinal, busca uma prova, mas nenhum sinal vos será dado a não ser aqueles que vós já tendes, e aqueles que vós vereis quando o Filho do Homem partir de entre vós”.

E quando acabou de falar, os seus apóstolos cercaram-no e conduziram-no para fora da sinagoga. Em silêncio foram com ele para a casa em Betsaida. Estavam todos pasmos e tomados pelo terror, de um certo modo, por causa da súbita mudança na


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tática de ensinamento do Mestre. Eles estavam totalmente desacostumados a vê-lo atuar de um modo tão combativo.

5. A NOITE DE SÁBADO

A todo momento Jesus quebrava em pedacinhos as esperanças dos seus apóstolos, repetidamente ele destruía as expectativas mais bem acalentadas deles, mas nenhum momento de desapontamento, nem tristeza, igualara-se aos que agora os surpreendiam. E, também, havia, agora, misturado à depressão deles, um medo real pela própria segurança. E estavam todos surpreendentemente assustados com a súbita e completa deserção do populacho. Eles estavam também um tanto amedrontados e desconsertados com a ousadia inesperada e com a determinação agressiva demonstrada pelos fariseus, que tinham vindo de Jerusalém. Mas, mais que tudo, eles estavam desnorteados com a súbita mudança de tática de Jesus. Sob circunstâncias normais eles teriam dado boas vindas ao aparecimento dessa atitude mais militante; contudo, vinda como veio, junto com tanta coisa inesperada, ela assustava-os.

E agora, além de todas essas preocupações, quando eles chegaram em casa, Jesus negava-se a comer. Durante horas ele isolou-se em um dos quartos do andar de cima. Era quase meia-noite quando Joab, o líder dos evangelistas, retornou com a notícia de que cerca de um terço dos condiscípulos tinha desertado a causa. Durante toda a tarde, os discípulos leais tinham vindo e ido, para informar que o recuo de sentimentos para com o Mestre era geral em Cafarnaum. Os líderes de Jerusalém não tinham sido lentos em alimentar esse sentimento de desafeto e, em todos os sentidos possíveis, em buscar promover o movimento de afastamento de Jesus e dos seus ensinamentos. Durante essas horas de provação, as doze mulheres encontravam-se em uma reunião na casa de Pedro. Elas estavam fortemente transtornadas, mas nenhuma delas desertou.

Era pouco mais de meia-noite quando Jesus desceu do quarto de cima e ficou entre os doze e os seus companheiros, que eram trinta pessoas ao todo. Ele disse: “Eu reconheço que essa separação no Reino vos angustia, mas é inevitável. E ainda, após todo a preparação e aperfeiçoamento que tivestes, houve alguma boa razão para tropeçardes nas minhas palavras? Por que ficais cheios de medo e de consternação ao verdes o Reino sendo despojado dessas multidões desinteressadas e desses discípulos com tão pouca disposição? Por que lamentais, quando nascendo está o novo dia do resplandecer de uma nova glória de ensinamentos espirituais do Reino do céu? Se julgastes difícil resistir a esse teste, o que fareis, então, quando o Filho do Homem voltar para o Pai? Quando e como ireis preparar-vos para quando eu ascender ao local de onde eu vim para este mundo?

“Meus amados, deveis lembrar-vos de que é o espírito que vivifica; a carne, e tudo o que a ela é pertinente, é de pouco proveito. As palavras que eu vos falei são espírito e vida. Tende ânimo! Eu não os desertei. Muitos ofender-se-ão com as afirmações francas desses dias. Vós já soubestes que muitos dos meus discípulos já recuaram; eles já não caminham mais comigo. Desde o princípio eu sabia que esses crentes de coração frouxo cairiam pelo caminho. Eu não vos escolhi a vós, doze homens, e vos separei como embaixadores do Reino? E agora, em um momento como este, vós também desertaríeis? Que cada um de vós olhe para a própria fé, pois um de vós corre um grave perigo.” E, quando Jesus acabou de falar, Simão Pedro disse: “Sim, Senhor, estamos tristes e perplexos, mas nunca te abandonaremos. Tu nos ensinaste as palavras da vida eterna. Nós acreditamos em ti e seguimos junto contigo todo este tempo. Nós


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não recuaremos, pois sabemos que foste enviado por Deus”. E, quando Pedro parou de falar, todos eles, em um só acorde, acenaram em aprovação a essa promessa de lealdade.

Então disse Jesus: “Ide descansar, pois tempos pesados estão para vir; temos dias de muita ação pela frente”.